Daiane Mello é uma mulher negra de cabelos cacheados com pontas loiras. Ela veste uma camisa branca, colar azul e calça jeans. Daiane também usa um batom vermelho
A psicóloga Daiane de Souza Mello participava de conferência sobre igualdade racial no momento da abordagem (imagem: Arquivo Pessoal)

 

“Nós sabemos que não é você, mas precisamos cumprir o protocolo”, disse um agente do programa Segurança Presente à psicóloga Daiane de Souza, de 35 anos. Ela estava prestes a começar uma atividade de trabalho, quando policiais a abordaram, por um sistema de videomonitoramento. No reconhecimento facial, a imagem de Daiane foi erroneamente associada a uma mulher que tem mandado de prisão em aberto. Apesar de as diferenças físicas entre ambas terem sido prontamente notadas por todos — exceto pela tecnologia —  ela só foi liberada ao apresentar seu documento de identificação. 

— Eu estava retornando do almoço, quando eles (os agentes) me abordaram na porta do evento, na frente de todo mundo. Tive que entrar no espaço onde estava a minha bolsa e, então, a ação continuou lá dentro do Liceu de Artes e Ofícios. Foi bem constrangedor — lembra Daiane.

 O Liceu sediou a 5ª Conferência Estadual de Igualdade Racial, evento no qual Daiane estava participando enquanto coordenadora de igualdade racial do município de Nova Iguaçu. 

O uso de câmeras de videomonitoramento com reconhecimento facial é cada vez mais comum nos centros urbanos, especialmente em locais que sediam eventos de grande porte. A experiência com o falso positivo do mecanismo de reconhecimento facial vai além do constrangimento e, de acordo com a psicóloga, vem causando transtornos na rotina desde o dia 30 de abril até hoje:

— Confesso que isso gerou muita tensão e ansiedade. Estou tratando da minha saúde mental, porque esse sentimento de desamparo, insegurança e medo me tomou. Fico andando por aí com medo de ser reconhecida de novo. Se a tecnologia afirmou que eu e aquela mulher somos a mesma pessoa, então ela pode afirmar isso de novo em qualquer outro lugar — teme Daiane de Souza.

 

Chegada à Defensoria Pública

Preocupada, a psicóloga recorreu ao Núcleo de Combate ao Racismo e à Discriminação Étnico-Racial da Defensoria Pública (Nucora) para receber orientações jurídicas. A primeira delas foi o encaminhamento à Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), para registro de ocorrência e coleta de depoimento. 

— O Nucora atua no acolhimento das vítimas, mediante a escuta ativa, a fim de viabilizar orientação jurídica e atuar de forma extrajudicial e judicial. Nesse caso, a vítima foi orientada a realizar o registro de ocorrência na Decradi e a Defensoria expediu ofícios para obter informações específicas sobre o procedimento relatado por Daiane, bem como solicitou gravações de câmeras. O Nucora acompanha a tramitação dos inquéritos policiais na Decradi e também atua solicitando a realização de diligências nas investigações — conta  a defensora Anne Caroline Nascimento, coordenadora do Nucora.

O Nucora solicitou à Ouvidoria-Geral da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, por meio de ofício, as imagens que foram capturadas pelas câmeras instaladas na farda dos policiais militares durante a abordagem à vítima.

 

Racismo algorítmico e a tecnologia

O racismo algorítmico é resultado da reprodução de práticas racistas da sociedade por meio da tecnologia, o que amplifica desigualdades. De acordo com o Panóptico, instituição que monitora o reconhecimento facial no Brasil, o país utiliza tecnologias de reconhecimento facial na área de segurança pública oficialmente desde 2018. Até 2021, a tecnologia já era adotada por vinte estados brasileiros. No entanto, a eficácia do reconhecimento facial é alvo de debates, sobretudo pela quantidade de falsos positivos para criminosos diante de rostos negros, o que acende o debate sobre o racismo algorítmico. 

Em uma ação conjunta, os núcleos de Combate ao Racismo e à Discriminação Étnico-Racial da Defensoria Pública (Nucora) e de Defesa dos Direitos Humanos (Nudedh) enviaram um ofício à Secretaria de Estado da Polícia Militar do Rio de Janeiro solicitando informações sobre o projeto de videomonitoramento urbano e o sistema de reconhecimento facial que estão em vigor no Rio de Janeiro. Dentre as questões levantadas, está o pedido para que seja informado o protocolo de atuação desde o momento em que o sistema acusa compatibilidade entre as imagens do banco de dados e da pessoa reconhecida pela câmera.

— O caso chama a atenção para alguns temas de grande importância, como o uso de novas tecnologias e os conhecidos vieses raciais dos sistemas de reconhecimento facial. O uso indiscriminado dessa tecnologia já tem resultado em violações de direitos, como nesse caso. E, como a humilhação da abordagem pública não pode ser desfeita, resta a busca pela reparação civil — reforça o defensor André Castro, coordenador do Núcleo de Direitos Humanos (Nudedh) da Defensoria Pública.

A psicóloga Daiane de Souza ainda não sabe onde foram parar as fotos do seu documento de identidade, apontado pelo agente como um registro obrigatório para que a abordagem policial fosse encerrada.

— A minha foto já foi excluída do banco de dados? Para onde ela foi enviada? Esse reconhecimento facial errado é muito angustiante e está acontecendo com várias outras pessoas, não só comigo, ao ponto de precisarem parar na delegacia.

A Defensoria Pública aguarda respostas dos ofícios enviados à Ouvidoria-Geral da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro e à Secretaria de Estado da Polícia Militar do Rio de Janeiro, além das investigações da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância, para elucidar o caso.

Texto: Nathália Braga



VOLTAR