“Não é uma cirurgia estética, é reparação”. Foi aos 5 anos, ao ser impedida de participar de uma brincadeira de pintar unhas com as amigas, que Liah Campos entendeu o peso de se identificar enquanto pessoa trans na sociedade. Agora, aos 39, ela poderá expressar sua identidade além da unha pintada. Após ação da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Liah ganhou o direito de realizar a cirurgia de feminização facial pelo plano de saúde.

A cirurgia chegou recentemente ao Brasil e é popular entre a população trans e travesti, por suavizar os traços dos ossos da face. Apesar de contribuir com a saúde mental dessas mulheres, o procedimento ainda é visto como “estético” pelos planos de saúde. Foi após a negativa da operadora Amil que Liah chegou até o Núcleo de Defesa dos Direitos Homoafetivos e Diversidade Sexual da DPRJ (Nudiversis).

— Havia a negativa do plano de saúde, sob a justificativa de se tratar de uma cirurgia estética. A nossa defesa no modelo de petição inicial foi toda no sentido de provar que não era apenas um procedimento estético, e sim voltado para a qualidade de vida da Liah, que passaria a transitar de forma mais tranquila na sociedade — explica o defensor Helder Moreira, coordenador do Nudiversis. 

Mulher trans, estudante de economia e moradora de Belford Roxo, na Baixada Fluminense,  ela luta desde a adolescência para conseguir ser quem é. Apesar de sempre ter tido certeza da sua identidade, sua transição social só foi possível mais tarde, já na fase adulta. Vinda de uma família conservadora, sua casa não era lugar de apoio.

— Eu sabia que tinha alguma coisa diferente comigo, mas eu não tinha compreensão. Como uma adolescente da década de 90, eu não conseguia viver minha identidade de gênero de forma mais plena, por causa dessas circunstâncias externas (família conservadora, escola pequena). Eu não podia ter a minha própria vivência. Então, eu me anulava bastante, me reprimia bastante — diz Liah.

A trajetória junto à Defensoria

Seu primeiro contato com a Defensoria do Rio de Janeiro foi em 2017, pelo Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia Luiz Capriglione (Iede), hospital de referência para a população trans por oferecer acompanhamento multidisciplinar gratuito, incluindo consultas com endocrinologistas, psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais. 

No instituto, uma das psicólogas encaminhou Liah à Defensoria, para dar início ao processo de requalificação civil, no qual pessoas trans podem alterar o nome que está no registro para outro, de acordo com sua identidade de gênero. Foi assim que ela conheceu o Núcleo de Defesa dos Direitos Homoafetivos e Diversidade Sexual da DPRJ (Nudiversis).

— Foi aí que toda minha vida mudou. Junto ao Nudiversis eu comecei meu processo para mudança de nome, e foi tudo muito rápido. Em menos de um mês eu já tinha a sentença para a retificação e mudei tudo. Foi assim que eu passei a existir. Eu tenho duas datas de nascimento, a do dia em que eu nasci e a do dia em que eu mudei de nome — conta Liah.

Além da retificação do nome, ela também deu entrada na cirurgia de redesignação sexual. A fila do Hospital Universitário Pedro Ernesto (Hupe) chega aos dez anos de espera, e sua luta junto à DPRJ visa contornar esse cenário. Por isso, Helder acredita que a decisão da cirurgia de feminização facial é tão importante. Liah é a primeira pessoa a conseguir a gratuidade do procedimento pela Defensoria Pública, e o coordenador do Nudiversis vê a decisão como um verdadeiro marco para os direitos LGBTQIAPN+. 

— É uma decisão realmente histórica, principalmente porque estamos no Mês do Orgulho LGBT. Essa decisão representa um avanço, de fato, significativo para a comunidade trans – celebra o defensor.

Liah também enxerga o simbolismo da decisão judicial para a causa. A disforia de gênero – descontentamento com um corpo que não corresponde à identidade de gênero de uma pessoa – é um sentimento comum a muitas pessoas trans. Procedimentos como a feminização facial ajudam a diminuí-la e, consequentemente, melhoram a qualidade de vida e a saúde mental dessas pessoas. 

— Essa cirurgia é muito importante, especialmente para nós, pessoas trans, que começamos a transição de gênero tarde. Nós, que tivemos a influência dos hormônios opostos, dos hormônios masculinos com um pouco mais de intensidade. Além disso, eu moro em Belford Roxo. Eu nunca teria condições de arcar, financeiramente, com uma cirurgia assim.

Hoje, após a decisão, Liah está no processo de exames pré-operatórios para a cirurgia, que ainda não tem data para acontecer. Ela acredita que se sentir bem com seu próprio corpo e ser chamada pelo nome que escolheu é um direito básico de toda pessoa transsexual. 

O Nudiversis em parceria com os Núcleos Regionais de Tutela Coletiva, os Centros de Cidadania LGBTQIAPN+ e o Tribunal de Justiça do Estado do Rio (TJ-RJ) idealizaram o projeto “Trascenda”. A iniciativa, cujo objetivo é facilitar o acesso à requalificação civil de pessoas trans e não-binárias, promove ações sociais em todo o estado do Rio de Janeiro.

Texto: Carolina Calháu

Foto: Jaqueline Banai



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