Rafael atualmente está participando do curso de formação de soldado bombeiro militar da corporação

 

Quando era pequeno, Rafael de Souza lembra que corria para a janela sempre que ouvia o inconfundível som da sirene do caminhão do Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Rio de Janeiro passando por sua rua. Olhando com admiração, ele sonhava um dia vestir o uniforme vermelho e salvar vidas, assim como seu pai e seu tio. Anos se passaram, e a chance de Rafael parecia cada vez mais próxima. No ano de 2023, ele recebeu a notícia de que tinha sido aprovado em todas as fases do concurso para condutor de viaturas da corporação, restando apenas passar pela banca de heteroidentificação fenotípica.

O que era um sonho, no entanto, passou a se tornar um pesadelo na vida do estudante. Aprovado nas fases objetiva, de aptidão física e no exame de saúde, Rafael foi surpreendido ao ser reprovado na banca de heteroidentificação, onde todos os candidatos pardos foram considerados inaptos, mesmo sem avaliação individualizada. Inconformado, ele recorreu, fundamentando sua autodeclaração de pardo.

– A primeira avaliação de heteroidentificação foi marcada por um ambiente tenso e discriminatório. Reunidos num auditório lotado, com cerca de 200 pessoas, fomos informados, de forma grosseira, que apenas poderíamos dizer "eu me autodeclaro negro" na hora da avaliação. Para nossa surpresa e indignação, apenas os candidatos que se autodeclararam pretos foram considerados aptos. Quem se declarou pardo foi automaticamente eliminado – narra Rafael.

Na segunda avaliação, realizada dias depois, a situação se repetiu: os candidatos foram colocados novamente todos juntos no auditório, com aproximadamente vinte pessoas. Antes de ser iniciado o procedimento, novamente um oficial disse que os candidatos só poderiam dizer “eu me autodeclaro negro” e mais nada. Na ocasião, Rafael e outros candidatos indagaram se os recursos escritos seriam analisados, recebendo a resposta de que “aquilo não servia de nada e que só valia a avaliação dos oficiais da banca”.

– Esse mesmo oficial afirmou que as pessoas usam de má-fé para tentar pegar a vaga dos outros e que as vagas são para pessoas negras. Em seguida, ele esfregou o dedo no próprio braço e disse em tom pejorativo “negão” – relata Rafael, que questionou a legalidade da avaliação, sem sucesso.

Ação Judicial

Semanas após o ocorrido, Rafael foi oficialmente declarado inapto, sem qualquer justificativa. Inconformado com a injustiça, ele buscou a Defensoria Pública de São João da Barra, que entrou com um pedido de anulação da banca de heteroidentificação, da aprovação de Rafael no concurso e por danos morais pelo constrangimento sofrido durante todo o processo.

Após a atuação da Defensoria, Rafael foi aprovado em todas as etapas do concurso e atualmente está participando do curso de formação de soldado bombeiro militar da corporação. Segundo o defensor público Roberto Felipetto, responsável pelo caso, a banca de heteroidentificação foi feita de forma ilegal e discriminatória, sem avaliação individualizada dos candidatos pardos. O defensor também lembra que, nos termos do Estatuto da Igualdade Racial, a população negra é definida como “o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)”.

– A banca descumpriu os princípios da legalidade, impessoalidade e isonomia, ferindo os direitos dos candidatos. Em síntese, nossa atuação garantiu que o assistido pudesse prosseguir no certame, ser aprovado nas etapas subsequentes, ser matriculado no CBMERJ (ato que equivale à posse) e participar do curso de formação.

Para Felipetto, o caso de Rafael levanta importantes questões sobre o combate à discriminação racial em concursos públicos. A heteroidentificação, quando feita de forma inadequada, pode gerar injustiças e ferir os direitos dos candidatos.

– Como se sabe, para se chegar à conclusão quanto à etnia do candidato, deve-se analisar não apenas a cor da pele, mas nariz, cabelo, formato do rosto, boca, entre outras características físicas que comprovem o fenótipo de pessoa parda – completa o defensor.

Texto: Jéssica Leal



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