A Defensoria Pública do Rio ingressou com pedido para atuar como amicus curiae no único caso exclusivamente sobre direito ao aborto em julgamento na Corte Interamericana de Direitos Humanos, em San Jose, na Costa Rica. O objetivo é contribuir “de maneira independente e imparcial com algumas considerações jurídicas”, uma vez que a sentença será de cumprimento obrigatório por todos os 35 países membros da Organização dos Estados Americanos (OEA), inclusive o Brasil. 

“O caso Beatriz y otros vs. El Salvador tem pertinência com os temas enfrentados no cotidiano da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, sendo indissociável das discussões em torno de direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, da violência obstétrica, da criminalização e da mortalidade materna, as quais têm sido objeto de ampla atuação institucional”, destaca o memorial enviado à Corte IDH pelas Coordenadorias de Defesa dos Direitos da Mulher e de Saúde.

A história de Beatriz, de El Salvador, na América Central, é similar às de tantas outras mulheres que chegam à Defensoria.  Em 2013, grávida de um feto com anencefalia, teve o pedido de interrupção da gestação negado pelo estado nacional. O procedimento só foi possível três meses depois, por intervenção da Corte IDH.  A jovem, que vivia em extrema pobreza, portadora de lúpus, morreu em 2017, com a saúde abalada pelas consequências da demora na realização do aborto.  

Em janeiro do ano passado, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos apresentou Relatório de Mérito à Corte IDH sobre o caso — o único exclusivamente sobre aborto, embora haja outros sobre direitos reprodutivos —, considerando cruel, desumano e degradante o tratamento conferido pelo estado salvadorenho a Beatriz e sugerindo medidas a serem adotadas para evitar que outras meninas e mulheres passem pela mesma situação, em todo o continente.

No Brasil, os efeitos da decisão da Corte Interamericana “trarão impactos positivos para os debates acerca da descriminalização do aborto” no âmbito da ADPF nº 442”, em tramitação no Supremo Tribunal Federal, afirmam as coordenadoras de Defesa dos Direitos da Mulher, Flavia Nascimento e Matilde Alonso, e de Saúde, Thaísa Guerreiro e Alessandra Nascimento, que assinam o memorial.  

A Defensoria do Rio já é parte interessada (amicus curiae) na ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), que busca descriminalizar a interrupção da gestação induzida e voluntária nas primeiras 12 (doze) semanas.


Perfil das mulheres e criminalização do aborto

Responsável pela defesa criminal de mulheres acusadas da prática de aborto em 64,7% dos processos distribuídos entre 2005 e 2017 no Estado do Rio de Janeiro, a Defensoria produziu relatório no qual demonstra que 
a maioria das rés indiciadas nos arts. 124 e 126 do Código Penal (provocar aborto em si mesma ou permitir que alguém o faça) eram negras e pobres.  Cerca de 22% não concluíram o Ensino Médio. 

“Mulheres em situação de pobreza, em sua maioria negras (60%), demoram mais a tomar decisão e recorrem a procedimentos clandestinos às vezes em estágio mais avançado de gestação”, ressalta o memorial à Corte IDH assinado pelas quatro defensoras públicas.

O documento enfatiza também que “os dados indicados, sobretudo as características de cor e renda das mulheres criminalizadas, não constituem uma singularidade do Estado do Rio de Janeiro.  Isso porque os padrões identificados convergem com as estatísticas da Pesquisa Nacional de Aborto (UnB)”, de 2016. “As tendências apontadas no relatório da Defensoria Pública se mostram compatíveis com os levantamentos de mortalidade materna no Brasil, que apontam ser o aborto a quarta causa mais comum”.

O memorial prossegue:

“Para a mulher negra, o direito de escolha é asfixiado por sua condição social, que a empurra para o uso de métodos caseiros, em estágio avançado de gravidez, com elevado risco de morte e frequente necessidade de internação hospitalar para socorro emergencial. (...) É comum que as mulheres estejam sujeitas a um novo ciclo de discriminação no Sistema Único de Saúde e deixem de ter atendimento adequado com base em ideias pré-concebidas sobre seu comportamento sexual e reprodutivo”, prosseguem as defensoras públicas. 

O relatório da Defensoria Pública assinala que “depois da investigação policial (52,3%), a denúncia do hospital/posto médico é a que mais dá ensejo ao conhecimento, por parte de autoridades, da prática do aborto, compreendendo 30,9% do total”.



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