Mesmo com os requisitos legais para a prisão domiciliar, 27% das mulheres presas em flagrante, entre janeiro e abril deste ano, tiveram a reclusão mantida após audiência de custódia. Entre as acusadas de furto, o índice sobe para 56%. Todas respondem por um crime que não envolve violência nem grave ameaça e são gestantes, lactantes ou têm filhos com menos de 12 anos de idade ou deficiência. É que mostra um levantamento da Defensoria Pública do Estado (DPRJ), divulgado em audiência pública no Supremo Tribunal Federal (STF), na manhã desta terça-feira (15).  

O dado, que integra estudo da Diretoria de Pesquisas de Acesso à Justiça da DPRJ ainda a ser divulgado, consta em memorial apresentado pela instituição na audiência pública convocada no âmbito do Habeas Corpus (HC) nº 165.704, relatado pelo ministro Gilmar Mendes. A iniciativa tem como objetivo debater a fiscalização do sistema penitenciário, a superlotação carcerária e a substituição da prisão preventiva pela domiciliar para mães e gestantes. 

Falaram pela DPRJ Pedro Carrielo e Lúcia Helena Barros de Oliveira, defensor com atuação em Brasília e defensora responsável pela Coordenação de Defesa Criminal. Na apresentação, de 10 minutos no total, eles descreveram a persistência do “estado de coisas inconstitucional”, como já reconhecido pelo STF na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 347, ao analisar os problemas do sistema carcerário. 

— Segundo o estudo recente realizado pela Defensoria, 27% das mulheres encarceradas tiveram as suas prisões domiciliares negadas muito embora presentes os requisitos. Destaco ainda o alto índice da conversão de prisões em flagrante em prisão preventiva por crimes simples, como furtos de faca e sabonetes — afirmou Lúcia Helena.

— É importante ressaltar que a Defensoria tem dados e evidências que comprovam a problemática do sistema carcerário. É preciso sermos mais firmes nas medidas reparadoras, como a questão da arquitetura penal, que permita que o sol seja para todos, e a medida da pena em dobro. É preciso que haja também mais ofertas de estudo e trabalho para essas pessoas — completou Carrielo.

No memorial, a Defensoria Pública apresenta uma série de fatos que demonstram os problemas crônicos do sistema prisional. Pesquisa do Departamento Penitenciário Nacional aponta que 37% dos presos no Rio são provisórios. E a tendência é esse número aumentar se nada for feito. Outro relatório produzido pela instituição, de setembro de 2017 ao mesmo mês de 2019, mostra que a taxa de conversão da prisão em flagrante em preventiva nas audiências de custódia, chegava a 70%. 

Entre as prisões preventivas decretadas nos últimos dois meses, destaca o documento da DPRJ, estão as de furto de um par de chinelos, de três facas de cozinha (no valor de R$ 12,99) e de um sabonete e um creme hidratante. 

Nas condenações por tráfico de drogas, ainda que em quantidades ínfimas, em casos que o réu faz jus ao benefício da redução da pena, as justificativas mais comuns para a manutenção da privação da liberdade são “o réu integrar organização criminosa” (35,84%) ou “se dedicar à atividade criminosa” (41,55%), sem qualquer fundamentação mais aprofundada. Em 94,95% dos casos, a principal testemunha é um agente de segurança.

Na apresentação, os defensores falaram também sobre a cultura do aprisionamento. Nesse sentido, destacaram as prisões decretadas por meio do reconhecimento fotográfico realizado na fase de investigação, que não tem base legal. Segundo um levantamento da DPRJ, 58 pessoas foram presas injustamente, entre junho de 2019 e março de 2020, por causa desta prática. Oitenta por cento delas eram negras. Todas foram absolvidas.  

— O sistema carcerário brasileiro é tão perverso que ele transcende à pessoa que está em situação de privação de liberdade, é algo que também machuca os familiares, os amigos, nós defensores. É preciso ter mais empatia ao analisarmos o tema, pois é inegável que há um superencarceramento acontecendo hoje no Brasil — destacou o defensor.

Outro ponto ressaltado foi o perfil dos presos em flagrante, com 77,4% de negros. Eles também são os que mais sofrem violência ou maus tratos no momento da prisão, apontam 80% dos relatos coletados nas audiências de custódia pela DPRJ.

— “O sistema carcerário é muito precário aqui onde me encontro, no Talavera Bruce. Vivemos como animais, tanto na parte da alimentação quanto no convívio. Não temos direito a nada praticamente. O não é mais certo do que o confere, por isso venho pedir ajuda. Sabrina, 28 anos”. Este é um trecho de uma das diversas cartas que recebemos na Defensoria. Elas revelam as condições desumanas do sistema carcerário brasileiro. São relatos de homens, mulheres, pessoas negras e pobres pedindo ajuda e dizendo que elas não têm mais condições físicas e psicológicas para continuarem nas circunstâncias em que elas se encontram. Esses fatos também indicam a sistematicidade do encarceramento — destacou Lucia Helena na audiência pública. 

No que diz respeito ao encarceramento feminino, o tráfico de drogas é, atualmente, um dos principais responsáveis pelas prisões de mulheres, juntamente com o delito de furto. Entre a justificativa dos juízes para não conceder a prisão domiciliar nos casos cabíveis é que os filhos dessas mulheres poderiam ser colocados sob os cuidados de terceiros. 
 
Os defensores concluíram com sugestões para evitar a superlotação. Entre as medidas apontadas estão a contagem proporcional da pena com base no índice de superlotação da unidade onde se cumpre pena, a declaração de inconstitucionalidade da prisão com base em reconhecimento fotográfico e a formação de protocolos interinstitucionais de prevenção e combate à tortura nos espaços de privação de liberdade. 

Leia o memorial aqui. 

Texto: Giselle Souza e Jéssica Leal. 



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