“A lei não pode espelhar a violência da sociedade brasileira contra a mulher. A sociedade brasileira é muito violenta contra a mulher. Se for pobre, mais ainda. E quando a mulher é pobre e preta, a violência atinge o grau máximo”. Essa foi uma das análises do médico e escritor Dráuzio Varella durante sua palestra no webinar da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ) “Encarceramento Feminino em Perspectiva: 10 anos das regras de Bangkok”, que aconteceu nesta quinta e sexta (11 e 12) e colocou em debate as vivências, as saúdes física e mental e os cuidados necessários para um tratamento humanitário de mulheres mantidas em cárcere. 

 
- A gente sabe que há um aumento substancial do efetivo carcerário feminino e esse aumento é realmente preocupante. Sabemos, também, que isso tem um impacto grande na mulher, na família dela e sobretudo nos seus filhos. Mais do que isso, nos seus filhos com idade inferior a 12 anos. No momento em que a criança precisa estar com a sua mãe, momento tão importante da vida, ela se vê privada da presença materna. É realmente de muita importância lançar um olhar atento a isso para que a gente possa implementar políticas e formas de minimizar as angústias do cárcere para essas mulheres - pontuou a coordenadora de Defesa Criminal, Lúcia Helena de Oliveira.
 
Para a defensora Patricia Magno, responsável pela palestra de abertura do evento, o principal ponto das regras de Bangkok é ir além da noção de igualdade como forma de não discriminação, mas sim na principiológica de igualdade como não submissão, mostrando que não bastar ser cego as diferenças, é necessário ser razoável a elas para produzir políticas inclusivas. 
  
- As regras de Bangkok olham para a mulher, cis ou trans, encarcerada. Essa mulher encarcerada está às vezes em um ponto cego da gestão pública porque são tantos os fatores de vulnerabilidade superpostos que a escondem, então é importante que a gente não olhe de modo separada para essa mulher como alguém que uma hora é presa, outra é mãe, mulher com deficiência, mulher pobre, mulher negra. É importante que a gente pense na imbricação desses fatores de opressão - argumentou Patrícia.
 
Ao todo, 21 pessoas participaram, em sua grande maioria defensoras públicas do Rio de Janeiro, porém, também houve participação da defensora pública do Rio Grande do Sul, Mariana Py; da defensora pública de São Paulo, Isadora Brandão; das advogadas Luciana Simas e Natália Damázio; e do médico e escritor Dráuzio Varella. O ciclo de  palestras contou com uma cerimônia de abertura na noite de quinta feira e se aprofundou durante a manhã e tarde da sexta, de 9h às 17h. 
 
O evento lançou a pesquisa "Mulheres nas audiências de custódia no Rio de Janeiro", realizada pela diretora de estudos e pesquisas de acesso à justiça da Defensoria, Carolina Haber. A organização ficou por parte de outras seis defensoras: a coordenadora e a subcoordenadora de Defesa Criminal, Lúcia Helena de Oliveira e Isabel Schprejer; a coordenadora de Defesa dos Direitos da Mulher (Comulher), Flávia Nascimento; as atuais coordenadora e  subcoordenadora do Núcleo de Audiências de custódia, Mariana Castro e Nathalia Parente; e a subcoordenadora do Núcleo de Defesa do Direito da Mulher (Nudem), Matilde Alonso.
 
- Esse é um evento que foi organizado e promovido  por mulheres, mas não apenas porque mulheres organizam eventos sobre mulheres, o que por si só já seria louvável, mas também porque é um evento organizado por três coordenações diferentes e todas elas são ocupadas por mulheres. É uma alegria e uma honra a gente poder jogar luz sobre esses temas, sobre os direitos que não estão sendo observados, sobre a condição de hipervulnerabilidade da mulher presa - comentou Mariana Castro durante o evento.
 
Na quinta-feira, às 19h, teve início o evento com a mesa inicial e a palestra de abertura. Já na sexta o bate-papo teve início às 9h e contou com os temas “Mulheres nas Audiências de Custódia”, “Mulheres no Banco das Rés”, “Mulheres no Sistema Carcerário”, “Saúde da Mulher em Cárcere”, “Impactos do encarceramento sobre a vida familiar da mulher” e a palestra de encerramento com o dr. Dráuzio Varella.
 
O médico aproveitou sua vivência de mais de 40 anos em presídios para ressaltar o diferencial entre mulheres e homens e encarcerados. Segundo ele, “o homem preso tem sempre uma mulher que vai visitá-lo. Seja mãe, namorada, prima, irmã, vizinha. Uma mulher vai vê-lo. Se vocês passarem na porta de qualquer cadeia do Brasil na véspera do dia de visita, há mulheres que armam barracas para dormir na porta e ser uma das primeiras a entrar no dia seguinte. Quando você joga uma mulher na cadeia, acabou. Ela é jogada lá. Essa é a diferença fundamental. Os homens não vão vê-las. A mulher vai para a cadeia e é abandonada por todos, até mesmo a mãe. Tem casos de mulheres que foram presas com os irmãos, por tráfico de drogas e a mãe vai visitar os meninos mas deixa a menina abandonada. 
 
Já a advogada do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (Cadhu), Bruna Angotti, ressalta que existem muitos aspectos e motivos para o abandono parental das mulheres em cárcere.
 
- Muitas mulheres preferem que os filhos e as mães não vão visitá-las. Existe a ideia de abandono e sim, se você compara as prisões femininas com as masculinas tem menos visitas, mas é preciso pesquisas mais aprofundadas para entender essas razões. Na nossa pesquisa “Dar à luz na sombra” a gente pôde ouvir de muitas mulheres que elas escolhiam que as mães não fossem visitá-las levando seus filhos porque elas não queriam que eles passassem  pela revista vexatória. Não queriam que os filhos tivessem a fralda arrancada para ver se tinha droga ou as mães tivessem que passar pelo exame de tirar as roupas na frente de outras pessoas. Eu acho que a gente tem que olhar para isso também como um cuidado dessas mulheres com seus familiares que muitas vezes é invisibilizado - pontuou.
 
O relatório  "Mulheres nas audiências de custódia no Rio de Janeiro" traça um perfil completo de mais de 500 mulheres entrevistadas pela Defensoria Pública em razão da realização das audiências de custódia, no período de janeiro de 2019 a janeiro de 2020.

 

O evento pode ser visto a qualquer momento aqui

A pesquisa completa está disponível aqui

Texto: Igor Santana



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