Unidos, os dados dos dois documentos mostram que em  81% dos processos com informações de raça, as pessoas reconhecidas são negras 

 

Dados de dois relatórios formulados pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ) juntamente com o Colégio Nacional de Defensores Públicos Gerais (CONDEGE) apontam a existência de falhas no reconhecimento fotográfico em delegacias do país. Segundo os documentos, de 2012 a 2020 foram realizadas ao menos 90 prisões injustas baseadas no método - sendo 73 no Rio de Janeiro. Desse total, 79 contam com informações conclusivas sobre a raça dos acusados, sendo 81% deles pessoas negras. Para defensores, os estudos revelam não só um racismo estrutural como também a necessidade de um olhar mais cuidadoso para os processos que se sustentam apenas no reconhecimento fotográfico da vítima como prova da prática do crime.
 
O primeiro relatório, disponibilizado pela instituição em setembro de 2020, citou 58 erros em reconhecimento fotográfico durante o período de junho de 2019 e março do ano passado. Todos eles no Rio de Janeiro. Nesta ocasião, em 8 processos não contam com informação sobre a cor do acusado, contudo, 80% dos suspeitos cujo a informação estava inclusa eram negros. Em 86% desses casos houve o decreto de prisão preventiva, com períodos de privação de liberdade que variaram de cinco dias a três anos.
 
O relatório mais recente, produzido com informações enviadas por defensores de 10 Estados diferentes e publicado em fevereiro de 2021, engloba o período de 2012 a 2020. Neste estudo foram contabilizados 28 processos, quatro deles com dois suspeitos, envolvendo assim 32 acusados diferentes. O Rio de Janeiro é o estado que apresenta maior número de casos, com 46% das ocorrências. Neste caso, apenas 3 acusados não tiveram informações sobre a cor inclusas no processo. Um percentual de aproximadamente 83% das pessoas apontadas como suspeitas também eram negras. 
 
No total, 81% dos erros citados nos casos dos 90 réus foram em prisões realizadas no Rio de Janeiro. A maioria das acusações foram por prática de roubo, na forma simples ou com causa de aumento, porém há dois casos de homicídio simples, uma tentativa de homicídio e um furto.
 
Somados os dois relatórios, os dados dão conta de que 81% dos presos injustamente por reconhecimento fotográfico são negros, somando-se pretos e partos conforme a definição do IBGE. Segundo o Coordenador da Comissão Criminal Permanente do CONDEGE e Defensor Público em atuação da Bahia, Maurício Saporito, isso deixa claro um racismo estrutural e uma questão racial forte, que não é desconhecida de todo universo jurídico e social.
 
- O que nós percebemos com esse estudo da Defensoria Pública do Rio de Janeiro juntamente ao CONDEGE é que, quando acontece o reconhecimento fotográfico, as autoridades que buscam a punição criminal de alguém já se satisfazem e não dão continuidade às investigações. Nós encontramos pessoas que estavam no exterior, monitoradas eletronicamente e até mesmo presos na data do fato e que não poderiam ter cometido o crime e mesmo assim foram reconhecidos  por fotografia. Isso mostra que a investigação se baseia apenas em uma prova, e a prova nesta fase precisa ser muito mais do que um reconhecimento fotográfico - ressaltou o Maurício.
 
A seleção de casos para a formulação dos documentos se baseou nas seguintes situações: o reconhecimento pessoal em sede policial ter sido feito por fotografia; o reconhecimento não ter sido confirmado em juízo; e a sentença final de absolvição. Também foram solicitados aos defensores que enviassem informações sobre nomes; data dos fatos; imputação; se houve prisão durante o processo; por quanto tempo; e motivos da absolvição.
 
- Esses casos indicam a necessidade de um olhar mais cuidadoso para os processos que se sustentam apenas no reconhecimento da vítima como prova da prática do crime, sem observância das formalidades necessárias para garantir que sejam feitos da maneira mais idônea possível, ou a existência de outras provas que corroborem a acusação. A prática de mostrar um catálogo de fotos na delegacia ou até mesmo fotos dos celulares dos policiais para as vítimas, cujas memórias já se encontram debilitadas pelo trauma sofrido, só tem servido para levar inocentes para a prisão. Nos casos analisados ainda foi possível demonstrar que as acusações não tinham fundamento e absolver os acusados, mas existem tantos outros em que não se questiona a fragilidade da prova e essas pessoas acabam condenadas de forma definitiva - pontuou a diretora de Pesquisa da DPRJ, Carolina Haber.
 
Entre os casos citados destacam-se alguns como: um acusado cuja vítima afirma não ter condições de reconhecer pois o local do crime estava escuro; uma segunda vítima, que também afirma ser  incapaz de reconhecer devido a luminosidade do local, mas que ainda assim foi chamada para o reconhecimento dois meses após ocorrido; e uma pessoa acusada a partir da foto de seu documento de identidade, mas que não foi identificada no reconhecimento presencial. 
 
A maioria dos acusados foram inocentados porque o reconhecimento não se confirmou em juízo, porém há casos em que ficou demonstrado que o acusado não poderia ter cometido o crime, pois estava preso por outro processo ou estava monitorado por tornozeleira eletrônica.
 
- A condenação baseada única e exclusivamente no reconhecimento fotográfico, colhido na fase de inquérito policial, vem se pautando por violações de direitos e garantias. Muitas das vezes, estes reconhecimentos fotográficos colhidos na fase policial não são confirmados em Juízo, no entanto, já produziram sérios danos, pois pessoas foram presas indevidamente ou responderam a processo penal, injustamente. Inegavelmente, o procedimento denominado de reconhecimento fotográfico dá lugar a uma série de erros, revelando, muitas das vezes, a seletividade penal. Para condenar alguém temos que ter produção de provas com total observância à ampla defesa e contraditório. Não se pode condenar com base em suposições, ao contrário, a prova deve ser firme e sólida, sob pena de violar garantias e direitos constitucionais - pontuou a Coordenadora de Defesa Criminal da DPRJ, Lúcia Helena Barros.

 

Acesse o relatório

 

Texto: Igor Santana



VOLTAR