Apoio jurídico a mulheres e os prós e contras das audiências virtuais dominam o penúltimo ciclo de palestras do ILAC 2020  

 

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Nos debates deste terceiro dia da 4ª Conferência Internacional sobre Acesso à Assistência Jurídica em Sistemas de Justiça Criminal (ILAC, na sigla em inglês), a assistência e proteção legal a mulheres foi o principal item da pauta. Ficou claro que a integração efetiva de questões de gênero em todas as áreas de atuação dos operadores de Direito contribui efetivamente para a equidade, resultando em tratamento jurídico justo para todos, e contribuindo, em última instância, para a plena realização da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas.

As mulheres têm necessidades específicas que requerem cuidados extras em se tratando de assistência jurídica. Afinal, estão mais expostas à pobreza, abusos, e à falta de amparo social. Estudos evidenciam que elas também têm maior propensão ao cometimento de delitos específicos, como crimes contra o patrimônio/propriedade, já que estes encontram-se diretamente relacionados a condições sociais e econômicas precarizadas. Especialistas apontam ainda que o envolvimento com drogas e prostituição costumam configurar, em muitas situações, tentativas de escapar de uma vida doméstica abusiva. 

Além disso, em determinados países, as mulheres não têm acesso à riqueza da família, o que pode vir a dificultar a contratação de assistência jurídica adequada. Como resultado, aumentam as dificuldades para se entender e “navegar” no sistema judiciário. Analfabetismo ou conhecimento insuficiente sobre direitos e barreiras culturais completam o quadro de maior vulnerabilidade.  

Liberdade ou opressão

Abrindo as discussões do dia, Jose Manuel Diokno, reitor fundador da Faculdade de Direito da Universidade De La Salle (DLSU) e presidente do Grupo de Assistência Jurídica Gratuita (FLAG) nas Filipinas, afirmou, categoricamente, que a lei pode ser usada para ajudar as pessoas ou para oprimi-las. “Nas Filipinas, o sistema jurídico gera muita injustiça, o que é de certa forma curioso. Buscamos soluções pra entender porque isso acontece, lidar com o problema, e assim amenizar as injustiças sociais.”

Ele ressalta ainda o importante trabalho realizado por sua organização, que além de oferecer atendimento jurídico, também encoraja a atuação “metalegal”, que consiste na mobilização de indivíduos na busca por seus direitos. “Os pobres e oprimidos podem e devem usar a lei para se liberarem”, conclui.

Violência doméstica

Nas Ilhas Fiji, conforme testemunho de Shahin R. Ali, Diretor em Exercício da Comissão de Assistência Jurídica e segundo painelista do dia, a pandemia levou o governo a se preocupar mais com a assistência jurídica da população, sobretudo de grupos mais marginalizados, como mulheres e crianças.

A exemplo do que ocorreu em outras partes do mundo, o isolamento social contribuiu para que os casos de violência doméstica aumentassem muito. Felizmente, porém, as mulheres estão reportando mais os abusos sofridos e acessando a justiça do país. Todos os casos de violência doméstica são investigados, mesmo que a vítima decida retirar a queixa. Da mesma maneira, todos, sem exceção, vêm sendo encaminhados em regime de urgência durante a pandemia.
 
Como uma das prioridades do sistema jurídico do país, as mulheres têm recebido orientação para buscar seus direitos, entre eles, o de não sofrer abusos dentro de casa. O governo tem investido, ainda, na educação de meninas, em plataformas digitais para dar acesso à justiça e em mídias sociais para informar e orientar. “Já evoluímos muito no acesso à justiça pelas mulheres. Empoderar os mais vulneráveis da sociedade é a nossa responsabilidade”, diz Ali.

Abordagem multidimensional

Para Rea Abada Chiongson, Consultora Jurídica Sênior da International Organization Law Development (IDLO), enfrentar a discriminação de gênero requer uma abordagem multidimensional que congregue gênero, Direito e desenvolvimento, a fim de que seja possível alcançar soluções abrangentes, multidimensionais e duradouras. Boas leis, implementadas de forma justa, são vitais para o empoderamento legal e o acesso à justiça das mulheres; no entanto, a igualdade de gênero e o empoderamento são cruciais para que essas leis sejam plenamente usufruídas por mulheres e meninas. 

Antes, as mulheres já enfrentavam muito injustiças, mas a situação piorou com a pandemia, que as deixou mais limitadas ao lugar onde moram, com acesso digital prejudicado, expostas à violência doméstica e impossibilitadas de acessar determinados serviços de saúde. Em alguns países como a Mongólia, boas práticas incluem a distribuição de “kits COVID” de higiene para a população de abrigos e bairros menos favorecidos.  “É difícil até para as mulheres acessarem a justiça se não tiverem cuidados básicos de higiene”, pondera Chiongson. Ela também chama a atenção para a formação de grupos multidisciplinares de operadores de Direito com o intuito de discutir temas pertinentes ao sexo feminino, aumentando, assim, a capacidade da justiça em lidar com os tipos de casos que mais as afligem. 

Trabalho de reinserção

Quase 30 anos de guerra civil e governo talibã acabaram por dizimar o sistema de justiça do Afeganistão, evidenciando a urgência por reformas. Nesse contexto, a ILF vem atuando, tendo representado mais de 60.000 casos criminais até hoje, assinalou M. Nabi Waqar, Diretor da International Legal Foundation (ILF) - Afeganistão.

Ele compartilhou um pouco da realidade das mulheres privadas de liberdade no país. A pandemia, diz Waqar, mudou todos os aspectos da vida das pessoas no Afeganistão e no mundo. Mas estar preso afeta ainda mais, pois interrompe muitas vezes o processo educacional individual, produz traumas psicológicos severos e afasta famílias - entre outros impactos - e é por isso que o trabalho de assistência jurídica é tão importante. 

A ILF tem trabalhado para propiciar orientação jurídica para as presas, seja fornecendo aparelhos celulares para comunicação com advogados, seja promovendo condições mínimas de higiene nos presídios. Mais importante, porém, é a reinserção social dessas mulheres, já que o fato de terem sido presas faz com que sofram enorme discriminação.  

Direito à moradia

Febi Yonesta, Chefe de Desenvolvimento Organizacional da Fundação de Assistência Legal da Indonésia (YLBHI), abordou a grilagem de terras, um dos maiores problemas de países do sudeste asiático. A prática é definida como uma aquisição/posse de terras em grande escala (normalmente, 200 hectares ou mais) por investidores privados ou governos visando à produção de alimentos e extrativismo. Tais aquisições prejudicam a segurança alimentar nesses países, levando muitas pessoas a ficarem sem suas terras devido à falta de segurança jurídica sobre a propriedade em que vivem, muitas morando, inclusive, em terrenos que pertencem ao Estado. Há casos de pessoas removidas pelo próprio Estado ou com o seu aval. 

Em anos recentes, na medida em que a grilagem ganhou escala e tornou-se mais sistematizada, o número de remoções e despejos disparou. Milhões de hectares de terra foram confiscados e entregues a investidores estrangeiros ou nacionais, e leis foram alteradas para favorecer interesses privados. Esses “investidores”, por sua vez, raramente respeitam os códigos de conduta de ocupação, deixando os indivíduos afetados em situação de penúria.  

Yonesta acrescenta que na Indonésia existe um histórico de discriminação de gênero e de falta de acesso à terra, o que se deve muito a grandes obras de infraestrutura. “Não interessa ao governo tratar adequadamente o assunto, que vai contra os direitos à moradia. Durante a crise da COVID-19, o problema se agravou e a YLBHI tem trabalhado para ajudar essas pessoas.”

Cautela na digitalização

Dando início ao segundo painel do dia, voltado para África, Europa e Oriente Médio, a vice-Ministra da Justiça da Ucrânia, Valeriia Kolomiets, falou sobre as mudanças implementadas no sistema de assistência jurídica do país a partir do ano passado, sobretudo no lado logístico. Há hoje cerca de 500 agências de atendimento que operam o mais perto possível das comunidades-alvo. A pandemia, por sua vez, acarretou maior digitalização do atendimento, e o governo têm feito uso pesado da mediação - em detrimento do litígio - por ser esse um processo mais barato e efetivo, mesmo que ainda limitado a questões civis.  

Embora seja um avanço bem-vindo em tempos de Coronavírus, as audiências remotas precisam ser tratadas com cautela: esse item foi consenso entre os participantes do painel. Ilze Tralmaka, Oficial de Políticas de Assistência Legal da organização Fair Trials relatou, entre outros problemas, a falta de pessoalidade e o estranhamento causados pela ferramenta: distorções na voz, problemas de conectividade e de comunicação. Em sua opinião, essas dificuldades prejudicam o direito de defesa do réu, bem como a sua prerrogativa de efetivamente compreender o procedimento. 

Ela destaca que as audiências virtuais também impõem limitação de tempo e impedem o acesso pessoal a um advogado, e por consequência a provas materiais e a condições de detenção, sobretudo entre os grupos vulneráveis.  Na outra ponta, a experiência também revelou-se difícil para advogados e juízes, tanto para compreender, da melhor forma possível, as vulnerabilidades do réu, quanto para tratá-las adequadamente. “As audiências virtuais são consideradas uma solução barata e rápida para sistemas superlotados, mas rápido e barato não devem ser referências. Devemos buscar um julgamento mais justo, não mais rápido. Por isso, é preciso cuidado com a adoção da ferramenta de forma perene”, opina Tralmaka.

Drogas e guerra

Chinelo Elizabeth Uchendu, Coordenadora Nacional de Advocacia Legal e Iniciativa de Resposta às Drogas da Nigéria (LARDI), e Nadia Carine Fornel Poutou, Presidente da Association des Femmes Juristes Centrafricaines, encerraram o painel tratando de dois temas sensíveis: o combate às drogas e o impacto da violência sobre os vulneráveis. 

Uchendu explicou que traficantes de drogas costumam ser tidos como pessoas abonadas, mas que na realidade isso não é verdade. Trata-se de um grupo muito vulnerável que muitas vezes é alvo de “armações”. Na Nigéria, desde o advento da pandemia, todos os processos foram suspensos e que tem havido abusos de direitos humanos nas unidades prisionais e delegacias de polícia, que estão superlotadas. A COVID-19 também causou o fechamento dos centros de testagem de drogas, deixando muitos indivíduos sem qualquer perspectiva de julgamento. Até o momento, as tentativas de digitalizar processos não foram eficientes, mas ela espera melhorias no futuro.  

Nadia Poutou comentou a situação de calamidade vivida pelo seu país, a República Centro-Africana, que tem enfrentado uma guerra civil com consequências péssimas para a população, em especial crianças e mulheres. O sistema jurídico tem problemas para operar, questão que vem sendo trabalhada com a ajuda de organismos internacionais e locais, com foco especial na promoção de direitos humanos e o direito à justiça por parte de mulheres. Nesse sentido, ela destacou o trabalho das nove clínicas de assistência jurídica mantidas por sua organização com o apoio de voluntários, que já viabilizaram acesso à justiça de 1.170 casos, além de terem conseguido aprovar a lei de assistência jurídica no país.

Mulheres na Argentina e Brasil
    
No terceiro painel do dia, dedicado ao continente americano, a defensora pública do Estado de Mato Grosso e coordenadora Comissão Nacional dos Direitos da Mulher, Rosana Leite, falou sobre a Lei nº 11.340, também conhecida como Lei Maria da Penha. Segundo ela, uma lei de vanguarda, a primeira a reconhecer as uniões homoafetivas do Brasil, e que, além disso, trata da violência no ambiente doméstico. “A Maria da Penha é a terceira lei mais importante do mundo, permitindo que processos cíveis e penais tramitem em apenso.” 

Segundo a ONU, sete em cada 10 mulheres serão agredidas ao longo da vida. No Brasil, durante a pandemia, as estatísticas de violência doméstica diminuíram, mas houve aumento do feminicídio. A principal causa é o inconformismo com o término de relacionamento, a chamada “quebra da virilidade masculina”. Em seguida vem a quebra da expectativa do “ser mulher”, que é quando o homem chega em casa e não encontra as coisas como gostaria. 

“As mulheres são mortas dentro de casa, e os homens, fora”, conclui Rosana Leite, acrescentando que no período emergencial, em se tratando de violência doméstica, foi permitido o registro eletrônico das ocorrências, priorizados exames de corpo de delito, e possibilitada a solicitação de qualquer medida protetiva por meio on-line.

Na Argentina, foram feitos diversos ajustes para permitir assistência da justiça na pandemia, sobretudo para as mulheres. Uma preocupação foi manter as medidas de proteção, requerimento feito pela Defensoria e acatado pela Câmara Civil. Notificações e adoção de determinadas medidas também preocupavam no momento de isolamento, questão em que o WhatsApp foi colocado como solução. 

Mas a questão central, segundo Raquel Asensio, coordenadora da Comissão de Assuntos de Gênero da Defensoria Pública Federal da Argentina, era a cobrança de alimentos, o que foi facilitado por meio de muito diálogo e acordo com o Banco de La Nación. “Também mudamos a recepção de novos casos, o que agora pode se dar por telefone, aplicativo e e-mail”, diz Asensio.  

Jovens e imigrantes

O Montreal Community Legal Centre (CCJM) faz um trabalho junto a imigrantes no Canadá, grupo mais vulnerável e tradicionalmente com acesso mais difícil à Defensoria Pública. Na pandemia, explica Gilles Trudeau, secretário executivo da organização, “conseguimos convencer as autoridades a reduzir as prisões e ampliar o acesso à assistência jurídica”. Para resguardar os serviços, novas tecnologias passaram a ser utilizadas para facilitar a comunicação com os clientes, incluindo vídeo conferências e ajuda jurídica por telefone o que não existia. “Entendemos que realizar as audiências por telefone não era ideal, mas era melhor do que não realizar nenhuma audiência.”

Encerrando as palestras do dia, Fran Sherman, Diretora do Programa de Defesa dos Direitos Juvenis na Boston College Law School, deu interessante relato sobre a assistência integrada para jovens, que ficou muito prejudicada durante a pandemia, já que para essa faixa etária a proximidade e o contato são primordiais. 

O modelo tem quatro pilares: a oferta de serviços legais e não legais pra satisfazer todas as necessidades do cliente; a comunicação dinâmica interdisciplinar, o emprego de profissionais capacitados em diferentes áreas, e forte compreensão e conexão com a prestação de serviços comunitários. “Utilizamos um modelo para traçar perfis e alocamos advogados e assistentes sociais condizentes”, esclarece Sherman. Pesquisa realizada no estado da Louisiana revelou que 60% dos adolescentes declararam-se satisfeitos com a abordagem, aprovação que tende a aumentar com o tempo de relacionamento e o nível de complexidade dos casos.  

Discriminação racial

Nesta quinta-feira, dia (17), a pauta é o “Combate Sistêmico à Discriminação Étnica e Racial”. Acompanhe a nossa cobertura nas redes sociais! O painel para as Américas, com tradução em Inglês, Espanhol, Francês e Português, terá início às 10h, com os seguintes palestrantes: Ana Paula de Oliveira, da ONG Mães de Manguinhos; Masha Lisitsyna, diretora jurídica sênior do Núcleo de Justiça Criminal da Open Society Justice Initiative; April Frazier, presidente da Black Public Defender Association, e Raymund Narag, Professor da Escola de Justiça e Segurança da Universidade de Southern Illinois. A moderação ficará por conta de Nicolás Laino, defensor público Federal da Argentina. 

Confira toda a programação no site: https://ilac2020.rj.def.br.



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