Demanda cidadã

Numa manhã de sábado com defensores, moradores do Alemão saíram de casa para tirar carteira de trabalho e cobrar habitação

Se for obrigada a resumir num solitário verbete o encontro de moradores do Complexo do Alemão com integrantes da Defensoria Pública do Rio, sábado passado, a palavra é cidadania. No “Dicionário Houaiss” o termo designa a qualidade ou condição do “indivíduo que, como membro de um Estado, usufrui de direitos civis e políticos garantidos pelo mesmo Estado e desempenha os deveres que lhe são atribuídos”. Convocada pelos defensores, a comunidade do Alemão começou a chegar às 6h da manhã, duas horas antes do combinado. Enfileiraram-se em busca, principalmente, de carteiras de identidade e de trabalho, ícones da entrada na sociedade formal.

Uma centena de moradores, a maioria jovens, saiu da Vila Olímpica com a carteira de trabalho na mão. Outro tanto deixou o local sem o documento, porque a demanda superou previsões. O mercado de trabalho está em crise. O desemprego voltou ao patamar de 2010. No Estado do Rio, 59.261 vagas formais foram extintas de janeiro a abril deste ano, segundo o Ministério do Trabalho. Na capital, o número de ocupados com carteira assinada diminuiu em 38 mil em 12 meses, informou o IBGE. Cem carteiras emitidas numa manhã de sábado é demonstração de fé na inclusão pelo trabalho.

O povo do Alemão também foi atrás de identidade — não a subjetiva, a real. Foram emitidas mais de 200 carteiras. Houve duas dúzias de coletas de material genético para exames de comprovação de paternidade. O núcleo de defesa da mulher entrevistou 180 moradoras sobre saúde, maternidade e violência doméstica. Uma cidadã transexual foi atrás de orientação para trocar de nome. Mães pediram tratamento psicológico para filhos com sintomas de síndrome do pânico. Ao todo, foram quatro mil atendimentos. Numa manhã de sábado.

A Associação de Defensores Públicos do Estado do Rio (ADPERJ) realizaria audiência pública sobre Construção da Paz no Alemão. O tema foi alterado, porque os moradores apareceram com pauta pronta. Cobravam a entrega de unidades habitacionais prometidas por estado e prefeitura. Mais de 1.800 famílias foram retiradas de casa na região, informou Alan Brum Pinheiro, do coletivo Juntos Pelo Complexo, que reúne 21 ONGs e instituições locais. Algumas famílias recebem aluguel social (R$ 400) há cinco anos. “Quando conversamos, percebemos que a violência permeia o discurso. Mas os moradores têm outras demandas. Denunciam a falta de opções de lazer, de atenção em saúde e de alguma instituição que os defenda da vulnerabilidade”, diz a Maria Carmen de Sá, presidente da ADPERJ.

A Defensoria tentará acordo com o governo fluminense para apressar a mudança das 500 famílias que ocupavam uma velha fábrica da Skol na área. Se não vingar, o passo seguinte será uma ação coletiva. As entidades do Alemão se uniram numa agenda de cinco ações. Além de moradia, querem saneamento básico, instalação de unidade do IFRJ (escola técnica federal), políticas para jovens e espaços de lazer, esporte e cultura.

Dias depois da morte do menino Eduardo de Jesus, de 10 anos, baleado na cabeça por um policial militar, o prefeito do Rio reagiu às críticas frequentes do secretário estadual de Segurança, José Mariano Beltrame, sobre falta de investimento social em comunidades de UPPs. Eduardo Paes enumerou clínicas da família, escolas e coleta de lixo, serviços municipais disponíveis no Complexo. A visita da Defensoria mostrou que o Alemão quer (e precisa) de mais.

http://oglobo.globo.com/sociedade/demanda-cidada-16270177

 



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