Pouca gente sabe, mas a região da Costa Verde, um dos mais concorridos destinos turísticos do Rio de Janeiro, abriga entre as montanhas da serra da Bocaina, a 25 quilômetros de Angra dos Reis, uma das últimas aldeias indígenas do estado, a Guarani Sapukai. Se por um lado a distância da chamada civilização contribui para a preservação da cultura local, por outro, torna os cerca de 400 moradores invisíveis para boa parte da sociedade, o que inclui o Poder Público. Reflexo direto desse contexto é o fato de que 25% da comunidade não têm registro civil. Aliás, não tinham. No dia 25 de junho, uma ação social da Defensoria Pública dentro da Aldeia, em parceria com o Detran e o cartório local, pôs fim ao problema.

 

A Ação nasceu de um pedido do próprio vice-cacique da aldeia, Domingos Venite – ou Karaí Tataendy, em bom guarani. Quando soube que defensores públicos haviam estado semanas antes em uma área ali perto para atender uma comunidade quilombola, ele teve a ideia de propor iniciativa semelhante na aldeia ao coordenador da região, o defensor público André Bernardes Lopes, e à defensora Patrícia Nascimento.

 

– É muita burocracia para podermos tirar um documento. Já temos dificuldade de sair da aldeia, por conta da falta de transporte e da estrada ruim, que, quando chove, não nos permite sair daqui. E quando chegamos lá, eles informam que a marcação deve ser feita através da internet e que precisamos voltar em outra data para emitir o documento e para buscar, quando estiver pronto – reclamou o vice-cacique.

 

Sem condições de fazer tantas viagens e tampouco de compreender a burocracia que envolve o acesso à documentação, a solução foi levar a estrutura até os índios e não esperar por eles. E assim, a Defensoria reuniu sua equipe, acionou o Detran e o cartório local e às 10h do sábado estava tudo pronto para o mutirão, com acesso à internet, máquina fotográfica digital, impressora e todo o aparato necessário para a emissão dos documentos e demais atendimentos.

 

A procura foi do tamanho da expectativa: nada menos que 325 atendimentos foram realizados, dos quais 103 emissões de carteiras de identidade, 15 certidões de nascimento, 123 ofícios e até dois pedidos de reconhecimento de paternidade. Alguns desses também receberam orientação jurídica, perfazendo o total de 200 atendidos apenas para este tipo de demanda.  

 

A ação atraiu índios de todas as idades e muitas histórias. Tiago, de seis meses, tirou sua primeira identidade. Regina Helena, de 95 anos, também. Mais que um atestado de cidadania, ter a identidade facilita a vida. Um dos maiores problemas do sub-registro civil se dá na hora em que vão buscar atendimento médico nos postos de saúde. Sem documentos básicos, o atendimento fica prejudicado.

 

Embora a Guarani Sapukai seja uma das sete aldeias indígenas culturalmente mais preservadas do estado, a luta contra a dominação branca se mantém firme. Um exemplo foi o pedido para que o pequeno Tiago pudesse tirar a foto da identidade com a pintura de rosto que caracteriza a tribo. O Detran exigiu cara limpa, mas a Defensoria conseguiu que fossem feitas duas versões da foto e vai tentar interceder junto ao órgão para que a exceção seja aberta. Outra situação mostrou o oposto. Um pai queria tirar o nome guarani da certidão dos filhos, sob a alegação de que quando buscam serviços na cidade, sofrem preconceito por terem um nome que a maioria das pessoas não sabe pronunciar. Nesse caso, ele foi orientado a procurar o núcleo de atendimento de Angra dos Reis. A expectativa é de que, até lá, ele reavalie a decisão. 

 

Para o defensor público-geral, André Castro, que acompanhou a Ação, essa foi uma importante iniciativa da coordenação regional, juntamente com o Detran e o Cartório:

 

– Entender a necessidade de trazer serviços essenciais, como a emissão de registros civis, 2ª via de documentos e de carteira de identidade, foi muito importante para a aldeia e para nós, da Defensoria, que pudemos identificar os principais problemas do local. A área da saúde foi colocada como problemática, pois faltam medicação e estrutura no posto médico e a carência de água tratada faz com que as verminoses continuem se perpetuando. Vamos buscar soluções administrativas e judiciais para os problemas –, prometeu.

 

Para o coordenador da região, esse foi um primeiro passo importante para que a Defensoria continue identificando as melhorias indispensáveis para sanar os problemas mencionados pelos índios. A emissão de documentos básicos foi apenas o pontapé inicial para o exercício da cidadania. Já o coordenador geral do interior, Marcelo Leão, informou que vai trabalhar para que os índios não precisem ir ao Detran buscar os documentos: a própria Defensoria vai reuni-los e levar até eles, na aldeia.

 

 

Apenas duas décadas da regularização

 

 

O decreto da Homologação da Terra Indígena de aproximadamente 2 mil hectares, localizada no bairro de Bracuhy, em uma das poucas áreas ainda preservadas de Mata Atlântica, foi publicado em 1995. Na aldeia, que fica distante seis quilômetros da Rodovia Rio-Santos, as cerca de 80 famílias contam com uma escola estadual trilíngue que vai até o Ensino Fundamental 2, um posto de saúde e uma casa da oração. De acordo com o vice-presidente do Conselho Indígena de Saúde, Lucas Benites, que tirou a carteira de identidade aos 25 anos, o colégio foi construído pelos próprios índios e o Estado só veio reconhecê-lo recentemente. Ele contou, também, que só agora conseguiram garantir que a escola ofereça merenda para os alunos. 

 

Até os 7 anos, as crianças da aldeia falam apenas em guarani, quando são alfabetizadas. Depois disso, passam a ter aulas em português e em inglês também, embora a língua principal continue sendo a que marca a etnia. Apesar da dificuldade de acesso à formação especial para a educação escolar indígena – alguns vão buscá-la em outros estados, inclusive – a escola conta com professores do estado e da própria aldeia.

 

Atualmente, a principal fonte de renda dos índios é o artesanato, que é vendido na cidade. A caça já não é mais uma realidade tão comum, pois a concorrência com o homem branco diminui a possibilidade de se encontrar um animal que possa ser abatido. Curiosamente, porém, a maior preocupação de um dos professores da aldeia não é muito diferente da de qualquer pai ou educador. Para Claudio Benites, ou Karai Papá, em guarani, uma das grandes ameaças à cultura indígena da Sapukai é o uso inadequado da tecnologia. Como em qualquer casa ou escola, lá também existe a preocupação de que os jovens passem muito tempo no celular.  

 

Texto e fotos: Thathiana Gurgel

Edição: Débora Diniz

 

 

 

 

 



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