Descriminalização das drogas para consumo próprio é tema "de suma importância"  para a população negra

 

A Defensoria Pública do Rio foi admitida como amicus curiae (ou parte interessada) no julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 635.659, que discute a descriminalização do porte de drogas para consumo próprio, e previsto para voltar à pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) no próximo dia 21.  

O pedido de admissibilidade, deferido pelo relator, ministro Gilmar Mendes, destaca que o tema é de “suma importância” para a população negra brasileira, a “que mais sofre o processo de criminalização secundária efetuado pelas agências policiais”. E, portanto, “urgente a descriminalização do referido tipo penal, por violação à vida privada, à intimidade e ao princípio da lesividade”. 

Assinam a petição pela Defensoria a coordenadora e a subcoordenadora de Defesa Criminal, Lucia Helena Barros de Oliveira e Isabel Schprejer, respectivamente, e a coordenadora de Promoção da Equidade Racial (Coopera), Daniele da Silva de Magalhães. As coordenações atuam “com o olhar atento e qualificado aos atravessamentos raciais que perpassam pela população negra, que constantemente se vê perseguida pelo aparato penal estatal com base na cor da pele”, numa perspectiva antirracista, conforme define o texto enviado ao STF.

“O tipo penal impacta de forma desproporcional a população negra brasileira, considerando a atuação seletiva e discriminatória das agências policiais, calcadas no racismo institucional, configurando uma sistemática violação de direitos fundamentais de cidadãs e cidadãos negros diuturnamente”, insiste o documento elaborado pelas três defensoras públicas.  “Não há qualquer dúvida de que o deslinde da controvérsia afetará diretamente a população atendida cotidianamente pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, em especial pessoas negras e pobres, muitas vezes selecionadas por mecanismos raciais para sofrerem a persecução penal estatal”.

A Defensoria do Rio sustenta que descriminalizar o porte de drogas para consumo próprio não fere a Lei de Drogas (11.343/06), uma vez que essa tutela especificamente a saúde pública. E o uso pessoal, previsto no art. 28 (adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar) afeta tão somente o indivíduo que consome o entorpecente. 

“O princípio da lesividade/ofensividade proclama que somente são passíveis de punição por parte do Estado as condutas que lesionem ou coloquem em perigo um bem jurídico penalmente tutelado”, ressaltam as defensoras, que classificam a descriminalização “como medida necessária para o desenvolvimento de políticas eficazes de redução da oferta e do uso de drogas”.

Estereótipo no banco dos réus

Na petição encaminhada ao STF, Coopera e CoCrim frisam “a fragilidade na aplicação das garantias penais e processuais no âmbito do sistema de justiça, quando ocupa o banco dos réus a figura do negro, do favelado, do estereótipo de perturbador da ordem pública”, levando à relativização de direitos e garantias fundamentais e incentivando padrões racistas de policiamento, abordagem, detenção, custódia e até mesmo execuções sumárias. 

As defensoras à frente de ambas as coordenações sinalizam a inconsistência da Lei 11.343/06 nos “critérios estabelecidos para a definição do enquadramento entre usuário e o praticante das demais condutas”, não havendo “fixação de critério objetivo sobre a quantidade de droga apta a caracterizar a traficância de drogas”. A Lei de Drogas, “ao não definir o enquadramento como usuário ou não, acabou determinando o aumento da população carcerária”.  

A petição assinala, porém, que a questão não se restringe à quantidade de droga, pois pesam na tipificação do crime “fundamentos discriminatórios ligados ao local em que se realizou a prisão, às condições em que se desenvolveu a ação e aos antecedentes da pessoa ré”.

“Vislumbra-se a caracterização da seletividade penal, em que a grande maioria dos encarcerados por tráfico de drogas são pessoas negras, pobres e residentes em periferias, bem como aquelas que são submetidas a um processo penal por força do disposto no artigo 28 da Lei de Drogas”, resumem as defensoras.

O pedido de admissibilidade como amicus curiae acolhido pelo STF contém ainda dados de uma pesquisa da Defensoria do Rio em convênio com o Fundo Nacional Antidrogas da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, cuja conclusão foi de que mesmo “réus primários, de bons antecedentes presos em flagrantes sozinhos, desarmados com pouca quantidade de droga em operações realizadas em área de tráfico de drogas têm grande chance de serem condenados pelo delito de tráfico”. 

O levantamento envolveu 2591 processos relativos a 3.735 réus, distribuídos entre 1º de junho de 2014 e 30 de junho de 2015, no município do Rio e na Região Metropolitana. 

“Uma análise das decisões judiciais indica que uma mesma quantidade de drogas pode ser capitulada como tráfico de drogas, ou como uso de drogas, e as circunstâncias que permearam o encontro das drogas são bem similares. A pesquisa aponta que cerca de 71,14% das sentenças baseiam suas condenações nos testemunhos dos agentes de segurança”, registra a Defensoria.

A petição encaminha ao STF também afirma ser “fundamental” a consideração de “presunção absoluta da finalidade de consumo próprio”, cabendo “à acusação o dever de vencer o ônus probatório da finalidade de mercância para caracterização do crime de tráfico”.

 

Texto: Valéria Rodrigues



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