O vice-presidente do Colégio Nacional dos Defensores Públicos Gerais (Condege), Rodrigo Pacheco, participou nesta terça-feira (6) de audiência pública na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado para debater o chamado Pacote Anticrime do Ministério da Justiça. Defensor público-geral do Rio de Janeiro, Pacheco manifestou a preocupação do colegiado com o projeto, especialmente em relação a três itens que afetam diretamente a população assistida pela instituição: a ampliação do conceito de legítima defesa; a introdução da justiça negocial no processo penal brasileiro e o uso da videoconferência no interrogatório e na audiência de custódia como regra.
 
Sobre o acordo penal, o defensor-geral destacou que o Ministério da Justiça é formado em sua maioria por profissionais com experiência na Justiça Federal, cuja realidade é completamente distinta da Justiça Estadual. Problema semelhante ao ocorrido na campanha das “10 medidas de combate à corrupção”. “Em ambos os casos, o impacto se dará nas varas criminais estaduais, apontando que aumentará o número de condenações e, por consequência, do aprisionamento. E é pública e notória a tragédia do sistema prisional brasileiro com a superlotação, chacinas e mortes, violentas e não violentas”, ressaltou.
 
Outra crítica importante foi quanto ao desequilíbrio de armas entre o Estado e o indivíduo submetido a um processo penal. Neste aspecto, sustentou Pacheco, o impacto nos Estados é muito drástico. Além disso, as renúncias são completamente desequilibradas, pois, enquanto a acusação abre mão apenas da aplicação da pena tal como cominada, o indivíduo/defesa são obrigados a renunciar ao recurso ao direito de produzir prova; a pena é reduzida de forma limitada; o acordo é equiparado à sentença penal condenatória e haverá fixação de indenização mínima à vítima.
 
Outro tema relevante para o debate e que é pauta do Condege é o fato de que, no Brasil, apenas 40% das comarcas contam com Defensorias Públicas, segundo dados do “Mapa das Defensorias” elaborado pelo IPEA, o que coloca os acusados submetidos à atuação de advogados dativos que, no afã de maior produtividade, poderão induzir à celebração de mais acordos penais. 
 
Pacheco também teceu críticas ao interrogatório e audiência de custódia por videoconferência. Para ele, o projeto tem o claro objetivo de reduzir custos. O Condege, no entanto, coloca-se contrário ao uso da videoconferência como regra e defende a sua excepcionalidade. Um das razões é o fato de que haverá aumento de gastos na aquisição de equipamentos para instalação de videoconferência em todas as comarcas e em todos os presídios, uma despesa que alguns tribunais não terão condições de suportar.  
 
Também merece reflexão a exigência de que toda audiência de videoconferência deva contar com a presença de dois defensores: um no presídio e outro na sala onde a audiência ocorrer. “Ora, se hoje apenas 40% das comarcas contam com Defensoria Pública, como garantir a presença de dois defensores em cada audiência de videoconferência?”, indagou o defensor-geral.
 
Ele lembrou, ainda, que a  audiência de custódia foi introduzida no Brasil para verificar a necessidade e a legalidade da prisão, mas também para prevenção e combate à tortura. Portanto, no caso específico da audiência de custódia, a videoconferência é absolutamente incompatível com sua essência e suas finalidades. A íntegra para a sustentação de Rodrigo Pacheco pode ser conferida no link https://bitty.ch/ncnp6.
 
Críticas de especialistas

Além do Condege, a audiência reuniu representantes das associações dos magistrados, delegados e outros especialistas em direito para instruir o relatório de um dos projetos (PL 1.864/2019) do pacote. Sugerido pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, o texto traz medidas contra corrupção, crime organizado e delitos praticados com grave violência à pessoa.
 
No início de julho, o senador Marcos do Val (Cidadania-ES) entregou parecer elaborado com sugestões de juristas, com 33 modificações ao projeto original. O senador Humberto Costa (PT-PE), no entanto, apresentou requerimento para a realização da audiência pública, com o objetivo de discutir melhor a matéria.
 
Representante da Associação Juízes para a Democracia, a desembargadora do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2) Simone Schreiber acredita que o pacote resultará em aumento dos encarceramentos e que prisões não resolvem a criminalidade no país.
 
A desembargadora leu relatório de 2016 do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) que indica que o país tem 726,7 mil presos em 368 mil vagas. A taxa de ocupação de presídios brasileiros, como apontou a especialista, é de 197%. Deste total, 40% são detentos provisórios, disse ela, ressaltando que o Estado não consegue garantir a essas pessoas o mínimo de condições de humanidade.
 
Ao dizer que as medidas do pacote anticrime são mais amplas do que o simples combate à corrupção, a desembargadora pediu aos parlamentares que analisem melhor o assunto, frisando a necessidade de harmonia entre Legislativo, Executivo e Judiciário.
 
— Esse é um problema de todos nós. Então, os três Poderes têm que estar engajados nessa reflexão. Encarcerar mais vai adiantar? — indagou.
 
Entre outros pontos, o PL 1.864/2019 permite a prisão de condenados em segunda instância, eleva penas nos casos de crimes com arma de fogo e amplia a situação de legítima defesa ao policial.
 
Na opinião da professora-adjunta da Universidade Federal do Rio de Janeiro Carol Proner, a proposição contém questões “nebulosas” e disfarçadas que podem resultar em “servilismo”, inclusive retirando atribuições do Congresso Nacional.
 
— É escandaloso, inaceitável, é um insulto aos senhores e senhoras senadoras. Uma zombaria de Poderes, num ativismo judicial que invadiu a competência de todo e qualquer Poder soberano deste país.
 
Para o presidente da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal, Edvandir Felix de Paiva, o PL 1.864/2019 traz contribuições importantes. Ele advertiu, porém, que a sociedade não pode considerar o pacote anticrime “uma bala de prata” para solucionar a criminalidade no país. Segundo o delegado, os problemas do sistema de segurança pública e Justiça criminal brasileiros devem ser combatidos em diversas frentes, por serem profundos e “multifacetários”.
 
Paiva criticou a ausência, no texto, de tópicos sobre o funcionamento das polícias e dos sistemas de investigação do país.
 
— Não basta legislação penal e processual penal. É necessário dar condições para as polícias trabalharem, com graus de autonomia. Investigação envolve poder público, e uma polícia sob jugo completo de um governo muitas vezes não consegue fazer o seu trabalho.
 
Ponderações

O professor de direito Geraldo Luiz Mascarenhas Prado defendeu o aprimoramento do sistema de apuração dos crimes e mais valorização do juiz de garantias (responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos fundamentais do acusado).
 
Na opinião de Prado, o sistema de Justiça criminal brasileiro precisa funcionar em harmonia, para que as investigações sejam aperfeiçoadas, a fim de evitar encarceramentos ou absolvições indevidas. O especialista disse que sentiu falta desses detalhes nas propostas do pacote anticrime.
 
— O que vi nos projetos em tramitação no Congresso foi uma preocupação exagerada com a decisão, com a punição em curto espaço de tempo. Isso, com todo o respeito, não vai nos levar a lugar algum — sinalizou.
 
Representante da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), o juiz de direito Paulo Afonso Correia Lima Siqueira concordou com a ideia de valorização do juiz de garantias junto ao Poder Judiciário, por ser este o órgão do controle da legalidade de todas as decisões processuais. O magistrado defendeu que o inquérito policial deixe de ser visto como mero procedimento administrativo e passe a dar ao acusado uma percepção penal plena de sua condição. E que o processo criminal deixe de servir apenas para embasar uma decisão final, para passar a garantir a qualquer acusado igualdade de direito de defesa.
 
Ao destacar que o sistema penitenciário nacional é falho, Siqueira observou que o Brasil não é um país onde se prende de forma exagerada, mas onde “se prende mal”.
 
— Se tivéssemos um sistema prisional em que se aplicassem realmente preceitos como prevenção e retributividade específica, além de condições de ressocialização, o direito penal teria outro viés — disse ele.
 
*Com informações da Agência Senado



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