O Circuito Favelas por Direitos percorreu 15 comunidades, colhendo relatos de moradores

 

“Entraram na minha casa, ligaram o ar-condicionado, comeram os danones dos meus filhos, levaram mil reais e ainda deixaram tudo revirado”.

“O café da manhã do trabalhador que sai de madrugada às vezes é um tapa na cara”.

“Eles entraram dentro da escola e ficaram daqui trocando tiro com bandidos. As crianças ficaram todas deitadas no chão, duas delas se urinaram. Pode olhar as marcas de tiro. A escola tá toda alvejada”.

Esses são alguns dos mais de 300 relatos anônimos e espontâneos de moradores de 15 comunidades do Rio de Janeiro coletados pelo Circuito Favelas por Direitos – projeto que, desde abril, acompanha de perto os efeitos da Intervenção Federal na Segurança Pública. O monitoramento levou à identificação de 30 tipos de violações de direitos cometidos pelas Forças Armadas e pelas polícias em territórios ocupados ou historicamente atingidos pela violência de agentes públicos.

Coordenado pela Ouvidoria Externa da Defensoria Pública do Estado do Rio (DPRJ), o projeto conta com a participação da Comissão de Direitos Humanos, Defensoria Pública da União (DPU), Secretaria de Direitos Humanos e organizações civis parceiras. As visitas resultaram em um relatório, cujos dados preliminares serão divulgados em uma reunião nesta quinta-feira (27/9), a partir das 9h30, na sede da DPRJ – Avenida Marechal Câmara, 314.

– Os mortos são expostos pelos dados da saúde e, em casos mais expressivos, como as chacinas, destacados na mídia. As violações ficam silenciadas, transformando-se em sofrimentos patrimoniais, físicos e emocionais. São relatos que expõem o cotidiano perverso de medo e invisibilidade em que centenas de milhares de pessoas no Rio de Janeiro se encontram submetidas e demonstram que há um modus operandi no modo com que as comunidades são tratadas pelas forças de segurança — resume o ouvidor-geral da Defensoria, Pedro Strozenberg, que esteve à frente de todas as visitas e coletas de relatos do Circuito Favelas por Direitos.

Com auxílio de uma rede de apoio composta por cerca de 25 instituições e entidades e com o suporte de lideranças anfitriãs em cada localidade, Strozenberg e defensores públicos de diferentes áreas de atuação dedicaram duas a três horas a cada visita, colhendo “relatos, e não denúncias”, entre moradores e comerciantes.

– Nosso objetivo é que o relatório sirva de instrumento de mudança e recomposição da agenda pública do Rio de Janeiro. Dezenas de casos individuais relatados demandam apuração e responsabilização, mas neste primeiro momento optamos apenas por apresentar uma visão geral – explica Strozenberg.

Violações cotidianas

O relatório destaca que há “um conjunto de violações cotidianas que não ganham estatísticas oficiais, mas contribuem imensamente para gerar sentimentos múltiplos de medo, desesperança e revolta em moradores de favelas e periferias”.  Ou, segundo uma das pessoas ouvidas pelo Circuito, na favela “falta tudo, falta luz, falta água, falta professor e médico; só não falta polícia”.

Os 30 tipos de violações foram divididos em cinco blocos – violação em domicílio, abordagem, letalidade provocada pelo estado, operação policial e impactos – e foram definidos a partir de relatos de furto/roubo por parte de agentes de segurança, dano ao patrimônio, violência sexual, extorsão, ameças/agressões físicas, execuções, disparos a esmo, entre outros.

“Aqui eles tratam todo mundo como se fosse bandido, ou é mãe e pai de vagabundo, se é mulher é mulher de vagabundo, se é criança é filha de vagabundo, tem 99% de morador, de trabalhador, mas eles acham que todo mundo é bandido”.

– É bem provável que algumas dessas violações, mesmo sem estarem formalmente orientadas, passem por uma “validação oficial”, como as práticas de fichamento ou revista a mochilas de crianças, contando com a insuficiente malha de controle das instituições internas e externas das atividades policiais – ressalva o ouvidor-geral.

O relato feito por um comerciante ilustra a análise de Strozenberg:

O Exército entrou aqui no bar e roubou o X-box do meu filho, comeu nossa mercadoria, levou a bebida, foi mais de 4 mil de prejuízo. A gente trabalha pra ter esse pouco e eles fazem isso”.

Ou como contou outro morador: 

“Tive meu portão arrombado diversas vezes. Agora eu coloco só uma correntinha, porque não dá para ficar consertando toda hora”.

Além dos inúmeros relatos de invasão em domicílio, há os de desrespeito na abordagem, inclusive a mulheres.

“Eles vêm revistar a gente já gritando, chamando a gente de piranha, mulher de bandido, drogada. Vem empurrando e mexendo na gente.  Eu sei que só mulher que pode revistar mulher, mas se a gente não deixar, leva tapa na cara”.

– Esse sentimento de temor está principalmente associado aos confrontos e as violações praticadas por policiais e, mais recentemente, por membros das Forças Armadas. A fronteira entre o que assegura a lei e o que é praticado na favela traz à tona falas controversas em relação ao reconhecimento das violações. Em alguns casos de inviolabilidade das casas, revista em celular ou de fotografia da identidade do morador, confundem-se os limites entre o ilegal e o permissível. Nos primeiros meses da intervenção, eram mais comuns os relatos de posturas cordiais e educadas do Exército, mas essa fala tem sido substituída pelo registro de violações cometidas pelas Forças Armadas, que têm se intensificado, em repetição e brutalidade – prossegue o ouvidor-geral.

Visitas às comunidades

A escolha das comunidades ouvidas pelo Circuito Favelas por Direitos seguiu duas referências: caráter preventivo, contemplando as localidades historicamente mais afetadas pela violência das forças de segurança, e casos de emergência, que abrange as áreas recentemente alvo de operações policiais.  

– Agressões físicas e verbais foram relatadas em todas as 15 comunidades percorridas. Os moradores relatam que os policiais costumeiramente abordam com gritos e palavrões. Entre as agressões físicas, a mais frequente é o “tapa na cara”. Tal prática se mostra mais comum com adolescentes, com moradores que questionam ou criticam abusos policiais e com pessoas que estejam utilizando ou portando dose individual de droga ilícita – destaca Pedro Strozenberg.

A invasão de dados de celulares é outra violação recorrente, segundo os relatos colhidos pela Defensoria Pública.

“Eu acho engraçado que eles proíbem a gente de filmar o que eles fazem, mas eles podem ver os nossos vídeos, nossas fotos. Eles pegam o celular, primeiro olham o Whatsapp e depois vão direto para a galeria de fotos. Revistam nossa vida, nossa intimidade”.

Outro acrescentou:

“Eu já tive dois celulares roubados por eles. Eles mandam tirar a senha. Olham as mensagens, os grupos e dependendo até levam mesmo.”

A revista em celulares e o fichamento de moradores foram duramente criticados pelo Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (Nudedh) da Defensoria logo nos primeiros dias da Intervenção Federal. A Defensoria já havia recorrido à Justiça contra uma outra prática comum entre as forças de segurança nos territórios ocupados: uso de helicópteros para disparos de cima para baixo.

O relatório do Circuitos Favelas por Direitos registrou o que disseram os moradores a respeito:

“Vocês estão vendo essas marcas? Tudo são tiros vindo do céu. Eles atiram de cima pra baixo e sai da frente. Até os policiais da UPP ficaram no meio do fogo vindo do céu e foi muito tiro. Olha esses buracos”.

“Quase todos os dias a gente acorda de manhã com o helicóptero em cima da gente, fazendo aquele barulhão. E eles vão e voltam, a gente fica o dia inteiro na angústia de que a qualquer momento vai acontecer o tiroteio. Às vezes, tem e o helicóptero atira. A gente morre de medo porque daquela altura o tiro pode pegar em qualquer lugar”.

– A escalada da letalidade policial decorre de uma política de segurança pública ancorada na lógica de guerra, fomentada por um significativo investimento de recursos em aparatos bélicos.  A ausência ou inobservância de protocolos e a reduzida oferta de canais de acolhimento emocional e apuração das violações relega a população, já castigada pela precariedade dos serviços públicos, à esdrúxula condição de subcidadania — afirma Pedro Strozenberg.

Números assustadores

Dados do Instituto de Segurança Pública indicam que, entre fevereiro e julho desse ano, 736 pessoas foram mortas pela polícia no Estado do Rio de Janeiro. Alguns dentre as mais de três centenas de relatos colhidos pela Defensoria Pública sugerem que os números podem ser ainda mais assustadores.

Na última operação que teve aqui, eles mataram quase 20 pessoas. Disseram que foi 8, mas é mentira. Sempre morre mais gente do que divulgam. Mataram os traficantes a facada depois deles ter se rendido, por que não levam preso?”.

“Os corpos daqui são levados para Nova Iguaçu, Mesquita e sei lá para que lugar. Aqui não tem essa coisa de perícia não”.

 – Importante ressaltar que esse trabalho não é uma pesquisa, mas uma prática responsável de apuração de informações que tradicionalmente não chegam de maneira sistematizada ao conhecimento público, dificultando atitudes direcionadas à sua superação. Como resultado, numa próxima etapa, levaremos sugestões e recomendações aos órgãos competentes com vistas a dar maior visibilidade e resolutividade às situações apontadas pelos relatos – conclui o ouvidor-geral da Defensoria.

O Circuito Favelas por Direitos percorreu a Rocinha, Complexo da Maré (duas idas, a locais diferentes), Ficap, Cidade de Deus, Complexo do Salgueiro (duas idas, a locais diferentes), Complexo do Chapadão, Complexo de Acari, Complexo da Penha (duas idas, a locais diferentes), Complexo do Alemão, Jacarezinho, Vila Vintém e Babilônia. A visita às comunidades é uma das dez iniciativas da Defensoria Pública do Rio no monitoramento e análise das consequências da Intervenção Federal na Segurança Pública do Estado.

Clique aqui para ver o relatório na íntegra.



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