O debate aconteceu no auditório da Sede da DPRJ

 

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), sediada em San Jose, na Costa Rica, determinou parâmetros garantindo proteção à identidade de gênero autopercebida com a determinação de que seja  mais ágil e simples a adequação do registro civil e da documentação de homens e mulheres trans em todos os países da América Latina membros da entidade, inclusive o Brasil, além do Caribe. O parecer, que tem o nome de Opinião Consultiva 24, foi emitido pela Corte em 9 de janeiro e amplamente debatido, nesta segunda-feira (22), na Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPRJ).

A instituição participou de audiência pública realizada na Corte, em maio do ano passado, com o objetivo de ouvir os países membros sobre a garantia à identidade de gênero e da qual resultou a decisão de que “a troca de nome, a adequação de imagem, assim como a retificação à menção de sexo ou gênero, nos registros e nos documentos de identidade para que estejam de acordo com a identidade de gênero autopercebida, é um direito protegido pela Convenção Americana. Como consequência, os Estados estão obrigados a reconhecer, regular e estabelecer os procedimentos adequados para tais fins”, diz a Corte, que continua: “ O reconhecimento da identidade de gênero pelo Estado resulta de vital importância para garantir o pleno gozo dos direitos humanos das pessoas trans”.

—  Nesse momento, a Defensoria deve se juntar aos movimentos sociais e às outras instituições para refletir sobre possíveis formas de provocar o Poder Judiciário, o Legislativo e os demais envolvidos para efetivar o que a Opinião Consultiva traz para a vida das pessoas trans – destaca a coordenadora do Núcleo de Defesa da Diversidade Sexual e Direitos Homoafetivos (Nudiversis), Livia Casseres, que participou do debate na DPRJ e representou a Defensoria na audiência pública realizada na Corte no Dia Internacional de Combate à LGBTfobia (17 de maio).

Ainda de acordo com o documento divulgado pela CIDH, identidade de gênero é “a vivência interna e individual do gênero tal como cada pessoa a sente, a qual pode corresponder ou não ao sexo atribuído no nascimento”. A Corte Interamericana também especificou que os procedimentos a serem adotados pelos países membros para garantia à identidade autopercebida devem prescindir de atestados médicos ou psicológicos “não razoáveis ou patologizantes”; devem resguardar a privacidade dos requerentes; devem ser céleres e gratuitos “na medida do possível”; e não devem ser condicionados à realização de cirurgias ou tratamentos hormonais.

Para tornar o trâmite mais rápido, a Corte estabelece que o procedimento administrativo, e não judicial, atende melhor aos requisitos elencados. Além disso, para que as recomendações sejam adotadas, não há necessidade de transformarem-se em lei no âmbito de cada país membro.

—  Se a Opinião Consultiva for aplicada pelos tribunais, poderemos chegar ao ponto de fazer a mudança de nome e gênero no cartório como já acontece com o casamento igualitário por meio da  Resolução 75 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). É o começo de uma nova batalha respaldada por decisão internacional – observa Maria Eduarda Aguiar, representante do movimento social Fórum TT (articulação de pessoas trans e travestis do Rio de Janeiro) no debate da DPRJ.

— É fundamental que a gente repense como a não garantia do direito das pessoas trans à identidade afeta a situação que hoje temos no Brasil de marginalização, de assassinato das mulheres trans e travestis, do feminicídio trans, da exclusão no mercado de trabalho – porque mais de 90% das travestis e das mulheres trans só encontram trabalho na prostituição – e da expectativa média de vida das mulheres trans e travestis no país de 35 anos. Essa é uma discussão muito importante, não é só a garantia do nome e do sexo no documento, é a garantia da cidadania – completa Jaqueline Gomes de Jesus, doutora em Psicologia Social e professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ).

Também participaram do debate na DPRJ a assessora parlamentar e ativista em Direitos Humanos, Alessandra Ramos Makeda; a defensora pública e especialista em direitos humanos e gênero, Ana Flávia Szuchmacher; e a defensora pública e colaboradora do Nudiversis, Letícia Furtado.

Levantamento

Um levantamento da Diretoria de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça da Defensoria do Rio sobre 170 ações para adequação de registro civil ajuizadas entre 2010 e 2016 constatou que apenas 69 receberam sentença, das quais 47 contemplando integralmente o pedido apresentado. Algumas ações esperam julgamento por até cinco anos e em pouco mais da metade dos casos houve imposição de perícia médica e de apresentação de laudos de teor psicológico ou comprobatório de cirurgia de redesignação sexual.

“A Corte reiterou sua jurisprudência constante no sentido de que a orientação sexual e a identidade de gênero são categorias protegidas pela Convenção Americana. Por ela, está proscrito qualquer norma, ato ou prática discriminatório baseado nessas características da pessoa. Reiterou, da mesma forma, que a falta de consenso interno em alguns países sobre o respeito pleno aos direitos de certos grupos ou pessoas que se distinguem por sua orientação sexual, por sua identidade de gênero ou sua expressão de gênero, reais ou percebidas, não pode ser considerado argumento válido para negar-lhes ou restringir-lhes seus direitos humanos ou para perpetuar e reproduzir a discriminação histórica e estrutural que estes grupos ou pessoas têm sofrido”, reforça o texto.

Casamento entre pessoas do mesmo sexo

Foi a Costa Rica, na audiência pública de maio do ano passado, a autora da consulta à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Seis meses depois, em 24 de novembro, a Corte Interamericana adotou então a “opinião consultiva sobre identidade de gênero e igualdade e não discriminação a casais do mesmo sexo”, divulgada no último dia 9.

“A definição mesma de família não é exclusiva daquela integrada por casais heterossexuais”, define a Corte. Assim, prossegue o documento, “todos os direitos patrimoniais que derivam do vínculo familiar de casais do mesmo sexo devem ser protegidos, sem discriminação alguma”.

Ainda segundo a Corte, “a obrigação internacional dos estados transcende a proteção das questões unicamente patrimoniais e se projeta a todos os direitos humanos, reconhecidos a casais heterossexuais”. E mais: “do princípio da dignidade humana deriva a plena autonomia da pessoa para escolher com quem quer manter um vínculo permanente e marital, seja natural (união de fato) ou solene (matrimônio).

O teor da Opinião Consultiva 24, relativo à união de casais do mesmo sexo, aplica-se especialmente aos países que ainda não reconhecem tal direito, parcial ou integralmente. No texto, a Corte admite “ser possível que alguns estados devam vencer dificuldades institucionais para adequar sua legislação e estender o direito de acesso à instituição matrimonial a casais do mesmo sexo”, mas insiste para que esses Estados promovam as reformas legislativas, administrativas e jurídicas necessárias à adequação de seus procedimentos.

“Conforme o direito internacional, quando um Estado é parte de um tratado internacional, como a Convenção Americana, tal tratado obriga todos os seus órgãos, incluídos os poderes Judiciário e Legislativo. Por tal razão, considera necessário que os diversos órgãos do Estado realizem o correspondente controle de convencionalidade, aplicando os padrões estabelecidos nesta Opinião Consultiva”, conclui o parecer da CIDH.

Texto: Bruno Cunha e Valéria Rodrigues



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