A Auditoria Militar é um termômetro da pressão e do stress sofridos por policiais militares e bombeiros do Estado do Rio de Janeiro.  A cada mês, são cerca de cem audiências em casos de supostas violações ao Código Penal Militar e de infrações cometidas no exercício da função ou em local de administração castrense.  Na prática, grande parte são por questões que poderiam ser resolvidas interna corporis, como episódios de indisciplina; há inclusive alguns punidos com penas equivalentes a homicídio culposo. 

- É grande o preconceito da justiça militar em não admitir o princípio da bagatela [desconsideração de delito de menor poder ofensivo], em nome do princípio da hierarquia e da disciplina, o que é um equívoco.  Já há um regulamento administrativo muito duro, que prevê inúmeras transgressões disciplinares. Muitas poderiam e deveriam ser resolvidas no âmbito da caserna, mas deságuam na justiça militar  – explica o defensor público Thiago Belotti, que atua na Auditoria Militar.

A Defensoria Pública do Rio se faz presente em cerca de metade dos processos envolvendo PMs e bombeiros na Justiça Militar. Os crimes mais graves levados ao órgão são de homicídio contra outro militar (em se tratando de vítima fatal civil, o caso vai para o Tribunal de Júri) e extorsão.  Os mais comuns são acusações de abusos em abordagens, por vezes com exigência de dinheiro, ou de insubordinação e abandono de posto. 

Para isso, segundo o defensor Thiago Belotti, contribui a precariedade da formação dos policiais e bombeiros, além das más condições de trabalho (falta de local adequado para realização de refeições e para atender necessidades fisiológicas) e de equipamentos, como viatura e armas. A criação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), constituídas por turmas de PMs recém-ingressos na corporação, também pode ter colaborado para o grande número de casos registrados nos últimos anos. 

-  O processo de formação dessas tropas foi acelerado, sem a estrutura necessária para que enfrentassem o dia a dia como policial. Isso se reflete nos casos de inadaptação à vida do quartel e quase sempre toda má conduta é criminalizada, o que é um excesso – acrescenta. 

Ele cita dois exemplos em que, por indisciplina sem maiores conseqüências, os réus foram condenados a um ano de prisão, pena mínima para homicídio culposo na justiça castrense e na comum. Em um dos processos, o PM foi punido por  discutir com o oficial que o repreendera por deixar a gandola (parte de cima da farda) para fora da calça. No outro, o PM chegou atrasado ao local de serviço e também se desentendeu com o superior responsável. 

- Há um vácuo no atendimento aos policiais militares e suas famílias.  Prevalece o discurso fácil da vítima de casos de violência, mas o fato é que o PM que está na ponta, na rua, isolado, parece descartável, e morre aos borbotões.  Não há assistência de nenhum órgão de direitos humanos a esses homens, mulheres e familiares – ressalta o defensor, que já atuou também em processos de PMs levados à Auditoria Militar por conduta na contenção de protestos.

Por vezes, ele acrescenta, é preciso haver “exercício da força necessária” para controlar manifestações. Ele cita especialmente o caso de um rapaz conhecido por participar de atos públicos e que costuma  insultar e provocar os policiais. 

Na Auditoria Militar, Belotti toma o primeiro contato com os réus apenas depois da citação dos policiais e bombeiros para se defenderem nos processos. O ideal, diz, seria acompanhá-los inclusive nos inquéritos administrativos internos, que podem render até trinta dias de cadeia, sem possibilidade de defesa. 

- No quartel, não há excesso de corporativismo, muito pelo contrário. Sacrifica-se muito em favor da manutenção da hierarquia e da disciplina.  Episódios de desacato, desobediência, atrasos e faltas são punidos com rigor.

Desde fevereiro, quando assumiu a titularidade na Defensoria junto à Auditoria Militar, Belotti já atuou em pelo menos 200 casos, recentes ou que já estavam em tramitação. A experiência permite ao defensor afirmar ser preocupante o número de policiais que fazem uso de substâncias entorpecentes, legais e ilegais. 

- Chega a assustar a incidência de policiais que trabalham na rua e recorrem a álcool e a medicamentos de tarja preta, como calmantes e antihipertensivos – destaca. 

O problema é facilmente detectável também no Corpo de Bombeiros. Segundo Belotti, a dependência química é comum entre os bombeiros, especialmente os guarda-vidas, o que explica tantos registros de deserção levados à justiça castrense.

 



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